Guy de Maupassant teve sua mestria reconhecida tardiamente. Somente hoje, mais de um século depois da década de 1880, justamente os dez anos exuberantes nos quais ele construiu praticamente toda a sua obra (mais de trezentos contos e seis romances, além de peças de teatro, poesias, crônicas, críticas artísticas e correspondências com vários interlocutores), somos capazes de avaliar com maior justeza o alcance e a importância de seu legado. Discípulo dileto de Gustave Flaubert, Maupassant foi um dos maiores expoentes da assim denominada literatura fantástica. Foi ele quem criou, com sua prosa rápida e afiada, as mais perfeitas descrições da vida da aristocracia, da baixa burguesia e do proletariado parisienses - ou seja, dos habitantes do centro do mundo ocidental de então. Por outro lado, seu testemunho sobre a existência ladina dos camponeses da Normandia - sua terra natal - e sobre a violência sofrida pelos soldados enviados às frentes de batalha é incomparável. Maupassant expôs com argúcia e sem recorrer ao sentimentalismo a hipocrisia, a brutalidade e a insensatez daquele mundo, um mundo que passaria a ser o nosso - já que foi no fin de siècle francês que se gestou o homem da modernidade em quem nos reconhecemos hoje: aquele que perdeu sua crença na gloriosa força da consciência e foi obrigado a admitir em si mesmo a presença de potências vindas da desrazão, num prenúncio incontestável da criação do conceito de inconsciente, por Sigmund Freud, e do surgimento do homem psicanalítico, nos anos que se seguiriam.